Autor: Paulo R. Margotto, Martha Gonçalves Vieira
Capítulo do Livro Assistência ao Recém-Nascido de Risco, Hospital de Ensino Materno Infantil de Brasília, 4a Edição, 2020, em Preparação.
A Enterocolite Necrosante (ECN) é uma patologia multifatorial determinada fundamentalmente por isquemia intestinal, lesão da mucosa, edema, ulceração e passagem de ar ou bactérias pela parede da víscera. Caracteriza-se pela distensão abdominal, vômitos biliosos e hematoquesia, capaz de evoluir para peritonite, pneumoperitôneo e choque. Pode ser considerada doença dos sobreviventes, uma vez que ocorre com maior frequência em pacientes que sobreviveram às várias intercorrências iniciais do período neonatal, como episódios de hipóxia e quadros infecciosos, e já se encontravam num período de reabilitação.
Com base de dados de grandes estudos multicêntricos do Canadá e Estados Unidos, a prevalência média está em torno de 7% entre os RN de 500 a 1500g, com estimativa de taxa de morte entre 20-30%, sendo maior nos RN que necessitam de cirurgia. Não há preferência quanto a sexo, raça ou época do ano. O tempo de aparecimento é inversamente proporcional à idade gestacional ao nascer, em média nos menores de 32 semanas ocorre na 3ª semana de vida, nos de 32-36 semanas, na 2ª semana e nos maiores de 36 semanas, na 1ª semana de vida. A mortalidade varia de 10 a 50%, mas a forma de progressão rápida tem mortalidade de praticamente 100%. Em 37% dos casos é necessário tratamento cirúrgico, 40-50%, podem apresentar gangrena intestinal ou perfuração. A necessidade de cirurgia aumenta para 61% nos menores de 1000g.
Os custos financeiros da ECN são altos, com estimativa de custos para as crianças afetadas, nos Estados Unidos, entre 500 milhões e 1 bilhão de dólares ao ano.
Este panorama complexo tem levado ao surgimento de uma gama maior de diagnósticos frente a suspeita de enterocolite necrosante (ECN), tendência já presente nos primórdios do estudo da doença. Desde o final dos anos 70, quando surgiram os critérios de Bell, já se falava na ECN como um espectro de doenças e não como uma entidade específica. Esse espectro caberia sob o mesmo “guarda chuva” dos critérios de Bell, e se beneficiaria de sua aplicação. A ECN naquela época atingia preferencialmente recém- nascidos maiores do que 30 semanas. Na era do surfactante, o perfil da ECN mudou: bebês menores sobreviveram, e apresentaram-se mais suscetíveis ao supercrescimento bacteriano intestinal. Nesse período, ferramentas importantes para a prevenção da ECN foram desenvolvidas, como o uso preferencial de dietas com leite humano e medidas criteriosas para o início e progressão da alimentação enteral no prematuro, incluindo uma fase de dieta enteral mínima. O uso de probióticos é controverso, principalmente nos recém-nascidos abaixo de 1000g.
Papel da transfusão sanguínea: Metanálises recentes concluíram que a aceitação da causalidade entre a transfusão sanguínea e a ECN seria prematura sem o benefício de estudos metodológicos prospectivos e mais cuidadosos que controlariam adequadamente o potencial de confusão. Amostras patológicas obtidas por laparotomia mostraram padrões de regeneração do tecido intestinal que indicam que a lesão intestinal inicial levou horas ou dias antes do diagnóstico ser feito clinicamente. A transfusão sanguínea para o agravamento da anemia pode ocorrer antes do diagnóstico clínico da ECN e levar à errônea conclusão de que a transfusão sanguínea causou a ECN. Pequenos estudos randomizados e controlados que avaliaram as práticas clínicas e resultados das transfusões sanguíneas não encontraram um risco aumentado de ECN relacionada à transfusão sanguínea. Um desses estudos concluiu que a prática permissiva da transfusão sanguínea foi neuroprotetora. No estudo de transfusão restrita e transfusão mais liberal nos RN<1000g, nesta última foi relatada poucos casos de ECN. Severas restrições à transfusão sanguínea, devido à preocupação com a associação entre ECN e transfusão sanguínea pode resultar em outras morbidades imprevistas. Em uma análise multivariada, a transfusão sanguínea não esteve associada com a taxa de ECN, mas uma anemia grave continuou a ser um fator de risco independente para ECN, podendo então ser a anemia e não a transfusão a causa de ECN. No entanto a decisão de transfundir um bebê prematuro deve ser feita cuidadosamente tendo em consideração o equilíbrio entre riscos e benefícios pertinentes para cada paciente. “A razão da transfusão demanda cuidadosa razão da transfusão”
No estudo de Marin T et al, com dois grupos (<33 semanas) um sendo alimentado durante a transfusão sanguínea e outro, não. A oxigenação tecidual mesentérica diminui significativamente após 15 horas da transfusão, principalmente nos RN<30 semanas. Assim, a dieta durante a transfusão sanguínea pode aumentar o risco de isquemia mesentérica e o desenvolvimento de enterocolite necrosante relacionada à transfusão.
Um grande estudo controlado randomizado com retenções de alimentos entéricos (Withholding Enteral Feeds Around Transfusion – WHEAT) está atualmente em curso e esperamos que forneçam provas para responder à questão clinicamente relevante de que alimentar durante uma transfusão de hemácias causa ECN. Enquanto, suspendemos a dieta durante a transfusão sanguínea nesses bebês.
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